Este filme é exemplar em relação à produção da Boca do Lixo, por vários motivos. Primeiro, por representar uma época que originou várias obras hoje antológicas, como "A Mulher que Inventou o Amor", de Jean Garrett, e "Império do Desejo", de Carlos Reichenbach, sem falar nos blockbusters "Giselle" e "Mulher Objeto".
Em segundo lugar, Alfredo Sternhein chamou para trabalhar consigo uma equipe que era uma seleção do que a Boca tinha de melhor. Ody Fraga o ajudou no roteiro, Claudio Portioli fez fotografia e câmera, e a produção é da DaCar, de David Cardoso, que faz o protagonista. O elenco traz mais umas dez figurinhas carimbadas da Rua do Triunfo.
Por fim, "Corpo Devasso" é um dos exemplos mais bem-acabados da tentativa de se unir apelo popular (sob a forma de erotismo) a uma certa militância política e de costumes no cinema brasileiro.
No início, você acha que está vendo um filme típico de David Cardoso: Beto é um atleta sexual simplório, explorado por uma enorme sequencia de mulheres: a filha do patrão (Evelise Olivier), uma fotógrafa tarada (Neide Ribeiro), uma advogada fazendeira (Meiry Vieira), a filha dela (Nádia Destro) etc... Mesmo a jornalista militante (Patrícia Scalvi) que se apaixona por ele acaba por largá-lo na primeira dificuldade.
Em meio a estes desencontros, Beto cai na prostituição. É quando conhece Raul (Arlindo Barreto, que fez o Bozo nos anos seguintes), que se apaixona por ele. É então que a obra se distingue e passa a integrar o panteão dos melhores momentos da Boca do Lixo.
O diretor não teve medo de mostrar o "rei da pornochanchada" em cenas de sexo com outro marmanjo. Mas vários outros filmes fizeram algo semelhante. O que é inovador aqui é que os gays de Sternhein, se não fogem inteiramente dos estereótipos, são, por outro lado, complexos, podem ter facetas diversas. A homossexualidade não os torna, necessariamente, melhores ou piores. Vistos sem preconceitos e sem paternalismo, tornam-se simplesmente humanos. Imagino que seja um caso único, na época.
Beto, por sua vez, não é apenas um rapaz do interior explorado pela luxúria e pelo "desamor" da cidade grande. Ele se mescla a essa megalópole, torna-se confuso e contraditório como ela própria, é capaz de encantar-se e de enojar-se com sua própria sexualidade. Esta, se proporciona dinheiro a seu bolso e prazer a seu corpo devasso, também domina tiranicamente seus passos, do dia em que foge da roça àquele em que sai da prisão. Para mim, a melhor atuação da carreira de David, justamente em seu papel mais desafiador.
A obra traz ainda uma ansiedade gostosa, típica dos tempos da abertura, quando se começava a poder falar de política sem (muito) medo de represálias. Fala-se de socialismo, democracia, greve, corrupção, tudo de uma forma atropelada, caótica e inconclusiva. Quem gosta de achar defeito dirá que é filosofia de botequim; eu prefiro ter consciência histórica e notar que isso é próprio de quem ficou amordaçado muito tempo.
É quase certo que este discurso poderia se refinar e se organizar com o tempo, principalmente nas mãos de diretores como Sternheim (cujas obras muitas vezes trazem este conteúdo político). Porém, por motivos de força maior, a Boca tomaria o rumo do sexo explícito poucos anos depois, o que acabaria por levá-la a uma irreversível decadência e ao colapso final, por volta de 1987.
Entre as cinzas, "Corpo Devasso" resgata um dos momentos mais críticos, criativos e ousados daquela produção. Uma bela amostra do que o cinema brasileiro de extração popular tinha de vigor, potencial e ousadia.
Marcadores: 60, 70, 80, Corpo Devasso, David Cardoso, dvd, filmes, Neide Ribeiro, Patricia Scalvi, Pornochanchada